segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Medicamentos à medida de todos os clientes (mesmo que não estejam doentes)

A depressão tem sido "vendida" como um problema cada vez mais ligeiro, para que mais pessoas tomem mais depressivos, diz Ray Moynihan 
 Jornalista investigou truques usados pela indústria farmacêutica para lucrar.

O seu desejo de fazer sexo é normal? Menos que o normal? Hum, o que será o normal? Seja lá o que for, acha que está abaixo do normal? Haverá algo de errado consigo? Talvez tenha uma doença... Talvez haja um comprimido que a faça sentir-se melhor, que a faça ter uma performance sexual sempre satisfatória - como o Viagra faz com os homens.
Há empresas farmacêuticas interessadas em criar uma espécie de "Viagra cor-de-rosa", um comprimidinho mágico. Serviria para tratar uma doença de que muitas mulheres hipoteticamente sofreriam, a disfunção sexual feminina - mas esta provavelmente não existe, pelo menos nos termos em que está a ser construída pela indústria farmacêutica. Este é talvez o caso mais escandaloso dos "vendilhões da ciência", aquilo a que em inglês se chama "disease mongering" ou vender doenças, traficar doenças, e que o jornalista australiano Ray Moynihan, que o P2 entrevistou recentemente, se dedica a investigar desde 1995. Um trabalho que lhe tem granjeado o reconhecimento da comunidade científica.

O Viagra soluciona um problema físico - uma questão de hidráulica, digamos assim, pois aumenta o fluxo de sangue para o pénis. Nas mulheres, não há nada de equivalente. É o desejo, ou a falta de desejo, que teria de ser tratada, se a indústria farmacêutica conseguisse de facto melhorar a vida sexual das mulheres com um medicamento.

A dificuldade em cumprir tal tarefa levou a empresa farmacêutica alemã Boehringer Ingelheim a renunciar a desenvolver o "viagra feminino" - aconteceu há dias, e já depois desta conversa de Moynihan com o P2, em Lisboa. A decisão da Boehringer Ingelheim foi anunciada após uma opinião negativa emitida pela FDA, a agência norte-americana que regula os medicamentos e os alimentos, sobre a molécula flibanserina, um antidepressivo com o qual esperava estimular também a libido das mulheres. Tonturas, náusea e fadiga são alguns dos efeitos secundários da flibanserina, que a FDA considerou que não eram compensados pela eficácia deste medicamento.

Mas duas outras empresas estão a estudar comprimidos à base de testosterona para o mesmo fim. Por isso, a tarefa de conseguir diagnosticar uma doença que nunca foi diagnosticada - ou construir uma doença, diz Moynihan no seu último e recente livro, Sex, Lies And Pharmaceuticals: How Drug Companies Plan To Profit From Female Sexual Dysfunction (Sexo, mentiras e medicamentos: como as empresas farmacêuticas estão a planear lucrar com a disfunção sexual feminina) - e encontrar um tratamento para ela continua.

"Construir é a palavra certa", disse Moynihan, na Ordem dos Médicos, em Lisboa, onde orientou um workshop sobre disease mongering, dias antes de fazer o mesmo na Universidade do Algarve. "Costumam perguntar-me se as farmacêuticas inventaram esta doença. Não. Inventar significa que a criaram a partir do nada; o que estão a fazer é a ajudar a construí-la", explica.

Desde 2003 que investiga as tentativas da indústria farmacêutica de diagnosticar e oferecer um tratamento para as mulheres que não conseguem desfrutar plenamente do sexo. "Nunca investiguei nenhum caso tão profundamente como este. Fiquei chocado com o que descobri."

Marketing = ciência?

Com a ajuda consciente ou inconsciente de médicos e cientistas, várias empresas farmacêuticas competem para construir esta nova doença e oferecer um produto para a tratar. "Um dos tijolos dessa construção é criar parâmetros para definir a doença: quando estão a ser desenvolvidas definições em conferências internacionais, há sempre cientistas e especialistas de marketing das farmacêuticas na mesma sala", conta.

Outro bloco de construção são os inquéritos para tentar determinar quão comum pode ser esta desordem - uma vez que não existem análises ao sangue ou radiografias que determinem os motivos da falta de desejo sexual. Estes estudos esbarram na delimitação de fronteiras entre o normal e o excepcional. Um inquérito feito nos Estados Unidos "chegou a mostrar que a disfunção sexual feminina pode ser comum a 43 por cento das mulheres!", contou. 
Os exemplos sucedem-se, como as cerejas: até a publicação de investigação científica - o padrão-ouro de credibilidade da ciência - fica comprometido, pois são criadas revistas de especialidades dirigidas por cientistas ligados a farmacêuticas. "Estamos a assistir uma assustadora aglutinação de marketing e ciência. E quando se tiverem fundido, será muito difícil saber o que é marketing e o que é ciência", diz Ray Moynihan. Pré-doentes

Este caso está em andamento e a ganhar velocidade, como um comboio numa descida. Pode dizer-se que alguém há-de puxar o travão, que o bom senso há-de prevalecer. Só que os vendilhões de doenças já várias vezes nos assustaram o suficiente com a sua propaganda para fazer com que a política de saúde das nações se alterasse, diz Moynihan, que é editor convidado da revista médica British Medical Journal e tem uma posição honorária na Universidade de Newcastle, na Austrália.

Este conceito do "disease mongering", do tráfico de doenças, "é uma maneira de falar sobre como os limites do que é a doença estão a ser alargados", explica.

Por exemplo, há 20 anos considerava-se que as pessoas que tinham uma tensão arterial sistólica de 120-139 e diastólica de 80/84 tinham tensão normal. Desde que os Institutos Nacionais de Saúde dos EUA reviram as suas recomendações, em 2003, passaram a ser considerados pré-hipertensos, susceptíveis de serem medicados.

A diabetes é outro caso de uma doença comum, que foi ainda mais massificada a partir de 1997, quando a Associação Americana de Diabetes baixou de 140 para 126 miligramas de glucose por litro de sangue (em jejum) o limite mínimo para diagnosticar a doença. Até 2003, eram consideradas pré-diabéticas (e susceptíveis de tomar medicamentos) as pessoas que tivessem entre 126 e 110 miligramas; a partir desse ano, o limite baixou para o redondo 100.

"Vemos que há um padrão, que isto está a acontecer com várias doenças, e é cada vez mais frequente. Há cada vez mais pessoas a serem descritas como doentes. O que está em jogo é alargar as definições da doença para vender sempre mais testes de diagnóstico e tratamentos", diz Moynihan.

Idealmente, para as empresas farmacêuticas, não estaríamos nunca saudáveis, apenas prestes a ficar doentes. "Como escrevi em 2005, em Selling Sickness (Vendendo Doenças), as farmacêuticas vêem as pessoas saudáveis como o mercado que vale mesmo a pena. Se descobrirem que, de alguma maneira, estas pessoas estão doentes e precisam de um medicamento, atingem o alvo."

E continua: "Se uma mulher saudável tem um certo risco de sofrer fracturas daqui a 20 anos, dizem-lhe que sofre de uma doença silenciosa, que tem pré-osteoporose. Com a descida dos níveis de alerta para a hipertensão, o colesterol e a diabetes do tipo 2 vemos algo semelhante. Não são realmente doenças, são factores de risco para doenças futuras." Resumindo: transformámos sinais de alerta em doença, que tem de começar a ser tratada anos mais cedo. Ainda saudáveis, transformámo-nos em doentes.

Obcecados pelos números

Mas então as mensagens com que somos bombardeados - vigie a hipertensão, não coma sal, gordura e açúcar, controle a diabetes, mantenha o colesterol baixo - são exageradas? São manipulações das multinacionais farmacêuticas?

"Há muitas mensagens de saúde pública positivas - precisamos de fazer mais exercício, ter uma vida mais saudável. Mas nos sistemas de saúde há uma ênfase maior na medicina curativa do que na prevenção. Além disso, há cada vez mais provas de que os factores ambientais e sociais das doenças são muito, muito importantes e que é preciso tentar compreendê-los e mudá-los, em vez de arremeter contra factores micro, como os níveis de colesterol", diz Ray Moynihan. 
"Tornámo-nos obcecados com os níveis destas coisas no sangue, distraímo-nos das nossas vidas com estes números, da tensão, da densidade dos ossos." Preferimos tomar um comprimido em vez de fazer exercício, enfrentar os problemas que causam stress e fazem subir a tensão."Há uma grande procura do público. As pessoas gostam de ver as complexidades da vida reduzidas a um problema médico. A deusa grega da cura chamava-se Panaceia e alguns de nós adoramo-la", reconhece. "Isto são questões filosóficas e culturais, relacionadas com a nossa cultura, a nossa economia, o consumismo, o poder dos media e da publicidade. Mas há coisas práticas que têm de ser mencionadas, como a proximidade dos médicos e das empresas farmacêuticas", sublinha Moynihan.

"Esta proximidade suspeita prejudica a reputação dos médicos e a saúde da população, porque o aconselhamento que estamos a receber dos nossos médicos é contaminado, sabotado pelo financiamento da indústria", diz.

E não são só os médicos: "As relações demasiado próximas entre a indústria e os grupos de pressão e associações de doentes são outra parte do problema, bem como as relações entre os jornalistas e as farmacêuticas, pois a educação dos jornalistas é deixada a cargo das empresas."

Mudar as cabeças

Não são só os almoços grátis, as canetas, as prendas, pequenas e grandes. "Isto não quer dizer que um médico que aceite um almoço seja corrupto - não. Embora haja muitas provas de que os médicos, quando se expõem aos efeitos do marketing, acabam mesmo por ser influenciados", diz. "Mas o marketing pode agir de muitas maneiras, e uma delas é a forma como pensamos acerca da doença."

A depressão, por exemplo, tem sido "vendida" como um problema cada vez mais ligeiro, para que cada vez mais pessoas possam tomar antidepressivos da geração Prozac em diante. "Vimos isto acontecer também com a menopausa, que foi vendida como uma doença de falta de estrogénio - porque assim as farmacêuticas podem vender o estrogénio que nos vai pôr bem."

O excesso - de consumo de medicamentos, de sintomas e factores de riscos diagnosticados como doenças - começa talvez a criar desconfianças, a mudar-nos mais uma vez as cabeças. "Não tenho dados, mas acho a pandemia de gripe H1N1, no ano passado, aumentou o nível de cepticismo entre a população e os médicos. Todos estão um pouco mais cépticos sobre o perigo dos vendilhões de doenças", diz Ray Moynihan.

"Receio que os interesses velados possam ter desempenhado um papel importante. Vimos governos em todo o mundo a tentar justificar as suas acções para comprar vacinas e antivirais e as pessoas comuns a dizer que não queriam arriscar os perigos de tomar esses medicamentos. As pessoas sentem que muitas vezes lhes estão a vender medo para sustentar a ganância de outros."

E ainda acredita nos médicos, e na medicina, Ray? "Acredito absolutamente no valor da medicina, na minha vida pessoal e profissional", garante. "Os medicamentos podem salvar vidas, prolongá-las. O marketing é que pode ser venenoso."

Artigo do Publico,18.10.2010 - Por Clara Barata


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